Automutilação | O perigo da dor que alivia a alma

A automutilação é definida como a agressão direta e intencional ao próprio corpo, geralmente sem que haja intenção consciente de suicídio. Os principais tipos de autolesão envolvem cortes, arranhões ou queimaduras na própria pele, ingestão de fármacos em doses superiores às posologias terapêuticas, uso de drogas e ingestão de substâncias (ou objetos não comestíveis), com propósito de autoagressão.

As causas dos comportamentos autolesivos podem ser múltiplas, em grande parte dos casos são sinais de outras condições psiquiátricas, mas isso não é uma regra. Independente da etiologia, o ato de se machucar espontaneamente indica a existência de sofrimento emocional intenso e que precisa ser devidamente avaliado e tratado. Frequentemente, pacientes com esses comportamentos relatam que a dor física ajuda de alguma forma a aliviar as dores psíquicas (ansiedade, angústia, tristeza, vazio e raiva, por exemplo). Ou seja, comumente se trata de uma estratégia (inadequada, disfuncional e nociva) para lidar com o sofrimento emocional intenso que proporciona uma “anestesia momentânea”.

Impulsividade e desregulação emocional

Pessoas que praticam autolesões costumam apresentar impulsividade exacerbada, baixa autoestima e dificuldade acentuada de regulação emocional (habilidade de elaborar as experiências e processar as emoções de forma assertiva, sobretudo diante de situações emocionalmente densas). Essas características são frequentes em algumas condições psiquiátricas, como o Transtorno de personalidade Borderline, por exemplo, um transtorno crônico e que gera a necessidade de acompanhamento longitudinal.

Fatores de risco e início dos comportamentos autolesivos

Frequentemente, esses comportamentos iniciam na adolescência e, em grande parte dos casos, surgem em indivíduos com histórico de problemas familiares e de traumas na infância. Ter passado por abuso físico, emocional, sexual, negligência e bullying são fatores de risco bem estabelecidos para o surgimento da automutilação. Alguns outros fatores de risco incluem:
• Ser do sexo feminino;
• Ser adolescente ou um jovem adulto;
• Ter amigos que fazem automutilação;
• Crises e distúrbios neurológicos;
• Distúrbios de identidade e autoestima baixa;
• Transtorno da Personalidade Borderline;
• Alguns tipos de Transtorno obsessivo compulsivo;
• Transtornos do Neurodesenvolvimento
• Elevados níveis de dor emocional;
• Transtornos dissociativos;
• Momentos de luto;
• Abuso de drogas lícitas e ilícitas;
• Transtornos alimentares;
• Desregulação emocional.

Como identificar o problema

É comum que os machucados sejam escondidos com pulseiras ou blusas de manga longa, por exemplo. Quadros crônicos de impulsividade, irritabilidade, autocrítica exacerbada, transtornos alimentares, diminuição da higiene pessoal e isolamento social também podem ser indicativos deste, entre outros problemas relacionados à saúde mental. Há seis perguntas simples que podem ajudar a identificar a automutilação:
• Alguma vez você cortou ou fez vários pequenos cortes na sua pele?
• Alguma vez você se feriu de alguma forma e desejou esse ferimento?
• Quando fez alguns dos atos, você estava tentando se matar?
• Você sente algum tipo de alívio quando provoca esses ferimentos?
• Você costuma ter esse tipo de comportamento diante das pessoas com quem convive?
• Quanto tempo você gasta pensando em fazer esse ato antes de realmente executá-lo?

Há relação entre a automutilação com o suicídio?

Conforme comentado anteriormente, as autolesões geralmente não têm como finalidade direta o suicídio. Porém, é importante avaliar quando esses comportamentos podem potencializar o risco de óbito, ou mesmo escalar para lesões potencialmente mais graves. Cabe notar que tentativas de suicídio podem ocorrer de forma impulsiva, geralmente associadas a sentimentos de desesperança e solidão. Muitas vezes, a tentativa pode ser potencializada pelo estresse agudo (sobretudo em pessoas impulsivas), principalmente quando há intoxicação por substâncias. De uma forma genérica é possível resumir da seguinte forma:
1. Automutilação sem ideação suicida: é praticada com mais frequência, embora essas lesões também sejam destrutivas, não há um risco iminente de morte.
2. Automutilação com intenção suicida: quando o objetivo final é o suicídio, a frequência das mutilações tende a ser menor e os métodos são mais agressivos e têm maior potencial de causar morte.
Cabe notar que pacientes Borderline, por exemplo, que tendem a encarar a realidade com base no “tudo ou nada”, têm tanto episódios de automutilação quanto ideação suicida. Entretanto, se trata de um transtorno complexo que será mais bem abordado em outro texto. O importante é que a automutilação seja identificada, tenha suas causas avaliadas, o risco de morte analisado e, a partir disso, se direcionem estratégias de tratamento.

Tratamento

A abordagem terapêutica para a automutilação requer uma compreensão profunda das causas subjacentes, e um plano de tratamento bem estruturado. As principais modalidades de tratamento são:
• Terapia Cognitivo-comportamental: A terapia cognitivo-comportamental visa identificar e modificar padrões de pensamento e comportamento que levam à automutilação. Os pacientes aprendem estratégias para lidar com emoções intensas de maneira mais adaptativa.
• Terapia Dialética: Especialmente eficaz para transtorno de personalidade borderline, a terapia dialética combina técnicas cognitivo-comportamentais com práticas de mindfulness. Ajuda os indivíduos a desenvolverem habilidades para regular emoções, tolerar o desconforto emocional e melhorar os relacionamentos interpessoais.
• Tratamento Psicofarmacológico: Em alguns casos, medicamentos podem ser prescritos para tratar condições subjacentes, como depressão, ansiedade ou transtornos de humor. Psicotrópicos, como antidepressivos ou estabilizadores de humor, podem ser parte integrante do tratamento.
• Grupos de Apoio: Participar de grupos terapêuticos oferece suporte emocional, compreensão mútua e compartilhamento de estratégias de enfrentamento. A interação com pessoas que enfrentam desafios semelhantes pode fortalecer o sentimento de pertencimento e promover a recuperação.
• Internação Psiquiátrica (em casos extremos): Em situações de crise ou quando a segurança do indivíduo está ameaçada, a internação psiquiátrica pode ser necessária. Oferece um ambiente controlado e suporte intensivo, permitindo uma avaliação mais aprofundada e intervenções imediatas.

É fundamental destacar que o tratamento da automutilação deve ser conduzido por profissionais especializados, como psicólogos e psiquiatras, com uma sólida formação na área. Cada caso é único, com suas próprias complexidades e nuances. A compreensão profunda das particularidades do paciente é essencial para desenvolver um plano de tratamento eficaz e personalizado. Sempre busque a orientação de um profissional qualificado para garantir a abordagem mais adequada e promover o caminho da recuperação. A eficácia do tratamento geralmente depende da abordagem utilizada, adaptada às necessidades individuais do paciente. Estudos prévios apontam que a utilização conjunta de estratégias psicoterápicas e farmacológicas são associadas a melhor resposta terapêutica. A colaboração entre profissionais de saúde mental, familiares e o próprio indivíduo é crucial para promover uma recuperação sustentável.

Referências

Smith BD. Self-mutilation and pharmacotherapy. Psychiatry (Edgmont). 2005 Oct;2(10):28-37. PMID: 21120088; PMCID: PMC2993516.

Cipriano A, Cella S, Cotrufo P. Nonsuicidal Self-injury: A Systematic Review. Front Psychol. 2017 Nov 8;8:1946. doi: 10.3389/fpsyg.2017.01946. PMID: 29167651; PMCID: PMC5682335.